Nos 55 milhões de anos que a Amazônia tem sido uma floresta tropical, nunca se viu um ano como 2024.
Ondas de calor escaldantes elevaram as temperaturas a altos recordes, enquanto uma seca histórica afundou os rios da bacia hidrográfica a baixos níveis sem precedentes. Ao mesmo tempo, os maiores incêndios florestais em décadas queimaram enormes áreas de floresta e criaram nuvens de fumaça que tornaram as cidades amazônicas as áreas mais poluídas do mundo.
Os veículos independentes de notícias da Amazônia estavam na linha de frente para narrar esses desastres, falando com as comunidades cujas vidas foram transformadas, relatando a resposta do governo, realizando análises de dados e desenhando mapas para mostrar a natureza histórica das condições ambientais.
Contudo, o que mais distinguiu o jornalismo climático desses veículos foram suas reportagens, não apenas sobre quem, o quê e onde (como está presente na maioria das coberturas da mídia sobre emergências naturais) mas também sobre o porquê.
“Quando eu comecei a cobrir o clima, fazia uma cobertura que hoje eu não acho tão correta, que era expor o que estava acontecendo naquele momento e só”, disse Jullie Pereira, repórter do InfoAmazonia, um veículo independente de jornalismo de dados. “Você escreve a história e não consegue aprofundar com especialistas, não consegue aprofundar com a crítica esse poder público, não consegue trazer propostas”.
Em vez desse tipo de reportagem superficial que descreve apenas o desastre específico e seu impacto imediato, veículos como a InfoAmazonia explicam as emergências climáticas locais, vinculando-as incessantemente à crise climática global e às políticas locais na Amazônia. Eles explicam aos leitores como as mudanças na atmosfera global transformam os ciclos climáticos na Amazônia, ao mesmo tempo em que investigam o imenso impacto que os projetos de desmatamento na região têm no clima.
O resultado é um jornalismo aprofundado que não deixa dúvidas sobre a gravidade da crise climática na Amazônia e não deixa ilusões sobre as políticas culpadas e as mudanças que precisam ser implementadas.
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Em grande parte da Amazônia, os habitantes não precisam ser informados de que seu clima local está se comportando de maneira estranha. “As pessoas da Amazônia têm essa percepção que o clima mudou na Amazônia, o clima não é mais o mesmo. Os ciclos de chuva, os ciclos de seca mudaram”, disse Fábio Pontes, editor do Jornal Varadouro, um veículo independente com sede em Rio Branco, no Acre.
Mas o que é menos visível a olho nu é a ligação entre o desaparecimento do igarapé local ou as ruas escaldantes de Manaus com os desastres que estão acontecendo em todo o mundo.
“O nosso desafio é esse, o de dialogar com a população local que isso é efeito também do que elas assistem todos os dias no noticiário, seja com um incêndio florestal nos Estados Unidos, com uma enchente na Europa, na Espanha, um tufão. Mostrar para elas que tudo isso está conectado no mundo todo e aqui não é diferente”, disse Pontes.
Os veículos independentes da Amazônia fazem essa ligação explicitamente, mostrando que as circunstâncias extremas que as pessoas estão vendo ao seu redor não são apenas anomalias, mas resultados previsíveis de uma transformação climática global.
No ano passado, Amazônia Real iniciou uma reportagem sobre a falta de água potável em Manaus descrevendo a cidade como “um exemplo do que a ciência afirma ser a nova realidade climática nos próximos anos”. O Jornal Varadouro cobriu as sucessivas enchentes e secas do rio Acre na mesma reportagem que cobriu a conferência climática COP29. O InfoAmazonia usou uma análise exclusiva e uma coleção de mapas e visualizações detalhados para mostrar que a seca de 2024 foi de fato um evento climático extraordinário que nunca havia sido visto antes.
Para fazer essa conexão entre emergências locais e a crise global, esses repórteres combinam ciência com histórias. Dados e citações de especialistas explicam a realidade inegável das mudanças climáticas na Amazônia, enquanto relatos impactantes sobre as lutas pessoais das populações locais fundamentam essas mudanças em impactos tangíveis e visíveis nas vidas humanas.
Na análise exclusiva do InfoAmazonia sobre a estiagem de 2024, Pereira explicou como o aquecimento do Oceano Atlântico se combinou com o El Niño para inibir a formação de nuvens sobre a Amazônia. Enquanto isso, a equipe de dados do veículo organizou massas de medições dos rios em gráficos para mostrar claramente que a seca de 2024 não foi apenas mais extrema, mas também veio mais cedo do que a estação seca típica da região.
Além desse jornalismo técnico sobre o papel das mudanças climáticas na seca, Pereira também incluiu histórias dolorosas de comunidades na Amazônia que sofrem com a descida de seus rios. Por exemplo, visitando a comunidade rural de Uarini, a mais de 500 quilômetros de Manaus, Pereira conversou com uma mulher que teve que dar à luz sem a ajuda de médicos porque a seca a impediu de chegar ao hospital mais próximo.
Teria sido impossível obter essa história se Pereira não tivesse viajado para a comunidade. “É necessário que a gente consiga chegar a essas localidades ou realmente contratar repórteres locais que consigam contar essas histórias e que a gente consiga entender o que de fato está acontecendo. Então isso demanda recurso, isso demanda equipe, isso demanda interesse”, disse Pereira. “É muito importante o trabalho da cobertura climática in loco mesmo”.
Pontes afirma que esses tipos de histórias pessoais dão à reportagem um impacto consideravelmente maior na explicação da crise climática, que muitas vezes pode parecer abstrata e distante. “Acho que o papel do jornalismo é dar humanidade, visibilidade, rosto, voz ao problema da questão climática. Mostrar que pessoas, seres humanos, estão sendo impactados”.
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O objetivo da cobertura climática nesses veículos independentes não é apenas mostrar a conexão entre desastres locais e a crise global, mas também mostrar como as ações locais na Amazônia têm um impacto abrupto no clima local e global. Ao fazer isso, esta reportagem tenta estimular uma conscientização política entre os leitores sobre a urgência da proteção da Amazônia e a necessidade de uma mudança na política ambiental da região.
“É a questão de relacionar também, por exemplo, a grandes projetos que tem aqui em relação da mineração, agronegócio, e também não entender que é algo isolado”, disse Adison Ferreira, co-fundador da Agência Carta Amazônia em Belém.
Vários veículos produziram uma cobertura aprofundada das eleições locais brasileiras no ano passado, examinando as políticas climáticas (ou a falta delas) propostas pelos candidatos nos municípios amazônicos e seu impacto direto no clima.
Ainda de acordo com Pontes, a região precisa de “uma mudança política onde nós não elegemos mais políticos… que fazem um discurso de que floresta em pé é um atraso econômico para a região. Eu acho que enquanto nós estivermos elegendo políticos desse nível que nós temos hoje no Acre, com esse discurso, o desmatamento vai continuar aumentando, vamos perder mais florestas e, consequentemente, a crise climática vai se intensificar”.
Para alguns, esse engajamento político é onde os veículos independentes da Amazônia mais diferem dos jornais urbanos tradicionais da região, que têm audiências maiores, mas são abertamente financiados por políticos e empresas, o que influencia sua cobertura. Cecilia Amorim, outra cofundadora da Carta Amazônia, disse que os jornalistas na Amazônia às vezes rotulam um desastre como causado pelas mudanças climáticas, mas não relatam os projetos locais de desmatamento que transformam os climas locais e globais: “Eles não especificam que é um efeito direto do agronegócio que invadiu aquela área, da monocultura de arroz que está lá”.
O objetivo final desse tipo de reportagem sobre as causas locais da crise climática é mostrar aos leitores o que precisa mudar na Amazônia.
“Com esse jornalismo que nós queremos fazer, nós queremos construir uma nova consciência social e política na sociedade local, para que as pessoas reflitam mais”, disse Pontes. “Nós precisamos também construir um discurso econômico, de mostrar para a sociedade, a criança, que nós podemos crescer economicamente, gerar emprego, renda, distribuir renda, mantendo a floresta em pé, explorando a floresta de forma sustentável, racional, e até fazendo reflorestamento”.
Este passo final, de demonstrar as políticas na Amazônia que poderiam ajudar a combater a crise climática, é crucial não apenas para incutir consciência política, mas também para dar esperança às pessoas, uma tarefa desafiadora, dada a devastação causada por desastres recentes.
“É necessário que a gente tenha uma perspectiva, assim, de esperança, porque isso não é como se tudo fosse explodir e colapsar, né? A gente vai continuar aqui, a Amazônia também vai continuar aqui”, disse Pereira. “Então, a gente precisa encontrar formas de tornar isso o melhor possível, o que a gente puder fazer”.