Entrevista: Por que Elaíze Farias acredita que os jornalistas não devem se conformar com a injustiça
6 de dezembro de 2024
Há mais de dez anos, as jornalistas Elaíze Farias e Kátia Brasil tiveram uma ideia: fundar uma agência de jornalismo investigativo com verdadeira independência editorial na Amazônia, focada nos direitos humanos e territoriais e nas comunidades marginalizadas da região. Hoje, com várias agências de notícias semelhantes operando na Amazônia e o modelo de jornalismo sem fins lucrativos se consolidando em todo o mundo, tal conceito pode não parecer tão ousado. Mas naquela época, havia poucos ou nenhum exemplo a seguir - particularmente na Amazônia, onde o jornalismo é quase exclusivamente financiado por corporações e políticos que exercem influência sobre a cobertura. Com sede em Manaus, capital do Amazonas, Farias e Brasil lançaram sua visão em 2013 sob a marca Amazônia Real, publicando várias investigações aprofundadas, ajudando-as a garantir financiamento filantrópico sustentável. A agência ajudou também a formar novas gerações de jornalistas, muitos deles hoje atuando em outras mídias independentes. Nos últimos anos, outros veículos independentes na Amazônia surgiram seguindo seu exemplo, mas a Amazônia Real continua sendo a principal fonte de reportagens combativas que responsabilizam o poder e revelam abusos de direitos humanos em toda a Floresta Amazônica. Publicou reportagens exclusivas e transformadoras sobre violência contra povos indígenas, desmatamento ilegal e invasões de terras, e corrupção e irregularidades por parte de funcionários públicos. Suas oficinas, treinamentos e estágios também ajudaram a lançar as carreiras de muitos dos jornalistas de direitos humanos mais bem-sucedidos da Amazônia atualmente. No mês passado, conversei com Farias por quase duas horas sobre as ideias, intenções e estratégias por trás da Amazônia Real e o que ela aprendeu nos últimos 11 anos. Você pode ler uma versão (significativamente) abreviada da nossa conversa aqui. Nota: Esta conversa foi editada para maior concisão e clareza. Você e Kátia Brasil eram repórteres em publicações tradicionais antes de iniciar a Amazônia Real. O que distingue a Amazônia Real dessas publicações e como você descreveria o tipo de trabalho que a Amazônia Real faz? Fazemos jornalismo. Para efeito de compreensão, quando nos perguntam, normalmente falamos que fazemos jornalismo socioambiental, ou apenas jornalismo independente e investigativo. Geralmente, por estarmos na Amazônia, nos associam automaticamente a jornalismo ambiental, que é uma descrição muito restritiva e segmentada. Não é nosso caso. A gente revisou muitos conceitos ocidentais e etnocêntricos, de raiz colonial que o jornalismo reproduzia. O nosso principal objetivo é falar do mesmo assunto de uma outra forma, ouvindo todas aquelas pessoas que muitas vezes não eram ouvidas para nada sobre assuntos que lhes atingia. A busca por mudar a forma de fazer jornalismo passa primeiramente pela descolonização da forma de produzir e publicar as informações que viram notícias. Passa por mudanças radicais na forma de apurar. Isso faz muita diferença. O jornalismo corporativo, o jornalismo que visa o lucro, não tem esse espaço. Em algum momento vai ter uma barreira. Porque também está mexendo com os interesses de outro grupo, geralmente dos poderosos grupos econômicos, interesses de políticos. Realmente, em todas as cidades da região Norte, o governo, prefeitura, algum político, há iniciativas de jornalismo que viram reféns deles, eles financiam - você tem que fazer isso. E na Amazônia Real a gente trouxe essa liberdade. A gente não permite que os financiadores, que geralmente são da filantropia, interfiram em nossas reportagens. Muitas pessoas tentam desacreditar esse tipo de jornalismo que busca centralizar pessoas marginalizadas chamando-o de “ativismo”. Como você vê a diferença entre ativismo e seu jornalismo e você acha que a divisão é necessária para manter? Não gosto da palavra “ativismo” para explicar o jornalismo que fazemos. Não sou contra quem faz ativismo, pelo contrário. Mas a gente lida com fatos. Apuramos e contamos as histórias em nossas reportagens. Ouvimos todos os lados, naturalmente. Embora em nossas reportagens os principais personagens, os sujeitos de nossas histórias, são os grupos sociais que geralmente são apagados nas grandes pautas da mídia corporativa ou que não detêm o poder econômico dos grandes interesses que tentam interferir nas tomadas de decisão. Com o nosso jornalismo, a gente mobiliza o grupo social, e é verdade, mobiliza o cidadão para gerar mudança. Mas fazemos isso com o nosso trabalho. Sabemos de um fato, de uma situação, vamos atrás para saber o que é. É por isso que existe apuração, é por isso que existe investigação, você vai atrás e vai mostrar. Então é isso que é o jornalismo. Muita gente tenta menosprezar esse jornalismo dizendo que é ativismo, como se essa prática também fosse inferior. Sou uma jornalista que gosta de ouvir e contar histórias. Precisamos humanizar e contar a versão de quem não aparece em dado oficial algum. Em nenhum registro institucional, muitas vezes. Por isso são apagados. Conheço várias histórias assim, esquecidas, como se elas nunca tivessem existido. Há casos até em que os dados oficiais, aquela papelada toda de documentos, contam mentiras e comentem grave injustiça. Sou uma jornalista eternamente inconformista com injustiça. Pessoalmente, e nem poderia ser diferente, tenho valores sociais de defesa de direitos humanos e da democracia. E que poderia ser chamado de ativismo, embora eu prefira a palavra “militância”, que ficou muito estigmatizada nos últimos tempos. Muitas vezes, por esse posicionamento, essa atuação mescla com minha trajetória profissional. Essa é uma escolha que não vem de agora. É de longa data, desde a época que eu estava na faculdade, ou nos movimentos sociais, e me acompanha durante esses longos anos de profissão. Eu não vou me colocar [ao lado do] agronegócio ou de grupos que atacam os direitos humanos. Nem ser porta-voz de minerador que está visando apenas o lucro, o capitalismo, por exemplo, ou de empresas que apresentam solução de mercado para fingir que estão salvando o planeta, quando na verdade estão causando destruição e colapso. Um dos maiores desafios que todos os veículos enfrentam hoje, mas especialmente os veículos independentes, é manter a audiência. Quem lê a Amazônia Real e como você mede seu impacto? Queremos ser lidos por todos os públicos. Não escolhemos segmentos, como muitas vezes nos perguntam. O site da Amazônia Real tem milhões de acesso por ano. A gente gostaria de ser mais lida na Amazônia. Essa é a nossa dificuldade também. Às vezes a gente é muito mais lida em São Paulo. Mas dependendo do assunto, as nossas reportagens são muito lidas na região Norte. Isso me leva a várias reflexões. É preciso se dar conta que nem todos os lugares da Amazônia têm acesso à internet. Temos uma desigualdade digital brutal. Há cidades onde o acesso à internet não existe ou funciona precariamente. Como a população vai ler nossas reportagens? Independente de barreiras como essa, nosso propósito é provocar mudança. O que é essa mudança? Um leitor comum, que está lendo sobre uma história, ele vai entender o que acontece. Ele vai se informar melhor. Ou mudança no tomador de decisão. Instituições públicas como o Ministério Público Federal, por exemplo, entrando com uma ação judicial sobre aquele caso que a gente mostrou na nossa reportagem. Pode ser também uma simples visibilidade, tirar aquele grupo do silenciamento. Você chegar numa terra indígena pela primeira vez e a pessoa dizer, ‘olha, é a primeira vez que uma equipe de jornalismo vem aqui.’ Então eu acho que existem vários indicadores, e o indicador não pode ser medido apenas com métricas ou outros engajamentos numéricos. Você enfatizou que o financiamento da Amazônia Real não afeta sua independência editorial. Como a Amazônia Real é financiada e como ela se protege da influência dessas fontes de financiamento? Depois de um ano [de existência], a gente começou a receber fundos da Fundação Ford, que é o nosso principal financiador até hoje. Espero que continue, mas sabemos que é um desafio permanente manter a sustentabilidade porque as demandas são imensas. Fundos de filantropia vêm e vão. A gente tem feito parceria com grandes financiamentos e pequenos financiamentos. Os pequenos geralmente são para coberturas específicas, como eleições, secas extremas, etc. E com períodos determinados. A gente abre mão de muitas possibilidades porque sabe que não tem nenhuma coerência receber financiamento, por exemplo, de empresas que estão violando direitos humanos e territoriais nas populações locais. Ou que estão praticando greenwashing para cativar e iludir a sociedade usando os veículos de mídia. Ou de políticos ou de agências governamentais. Se aceitássemos, seríamos reféns da pressão de que quem financia. A gente nunca foi influenciada ou tivemos interferência por nenhuma das instituições que nos apoia. Somos irredutíveis nessa posição. E somos muitos transparentes, tanto que todos os nossos financiadores aparecem no site da Amazônia Real. Mas gostaríamos de variar os fundos de financiamento. Uma prática que gostaríamos que desse certo é a doação dos leitores. Ainda não é comum a doação no Brasil, mas temos esperança que isso mude. Acabamos de iniciar uma campanha de financiamento de leitores, pedindo doação para cobertura da COP30, para ampliarmos nossas reportagens sobre a crise climática e também para termos recursos para enfrentar assédios e processos judiciais. Também achamos importante termos recursos para a segurança da nossa equipe em nossas reportagens, sobretudo as de alto risco. A gente criou um protocolo de segurança para os repórteres, que inclui a proteção deles em seu trabalho. Que dicas você tem para interagir com fontes, particularmente grupos indígenas e outras comunidades marginalizadas, que podem não ter muita experiência com a mídia? Antes de tudo, é estar genuinamente comprometido com a população ou o grupo social que você quer dialogar. É importante que você tenha aliados nestas comunidades, conquistar a confiança deles. Compreender as suas ideias e linguagens. É preciso sempre ser transparente sobre suas as intenções, qual o objetivo da reportagem e o que pode acontecer de benefício. Não ir por vaidade, por likes ou pensando em premiações, e nem querer impor seu planejamento e cronograma sem ouvir as populações locais antes.
Devemos construir relacionamentos antes de tentarmos um primeiro contato. Nem sempre vamos ser recebidos de braços abertos. Para não sermos alvo de desconfiança, devemos fazer um trabalho permanente de conexão. Precisamos aprender a ter método de trabalho também. Aquela visão do jornalista aventureiro, achando que está explorando um “tempo perdido do passado”, cheio de imaginário ocidental, de chegar sem avisar, não funciona, isso está ultrapassado. E é até desrespeitoso. Outra coisa é que a gente não pode entrar e sair com uma única voz falando sobre aquela comunidade ou aquele assunto que você está investigando. Muito menos apenas uma voz oficial, ou uma voz ocidental, o ‘especialista em tal assunto’. É importante dar espaço para fontes que muitas vezes são excluídas nas reportagens, seja as de campo sejam as feitas remotamente. Uma das orientações que a gente sempre dá para os repórteres: fale com mulheres. Tentem falar com mulher naquela comunidade. Não inclua apenas homens. Ter olhar crítico, estudar, pesquisar, ter humildade e lembrar que estamos sempre aprendendo, não somos especialistas em nada. Fugir do senso comum sobre a Amazônia. Quer falar sobre a Amazônia e suas populações? Estude a história da região. Saiba como ele se insere na historiografia brasileira. Vai perceber por que a Amazônia é um território em permanente disputa e confirmar que o modelo colonizador do passado se atualiza, com novas práticas de colonização, exploração, conflitos e desigualdade. Olhando para os 11 anos da Amazônia Real, o que mudou? Quais são alguns momentos que se destacam para você? Quando a Amazônia Real começou em 2013, já iniciamos nosso projeto de jornalismo de forma profissional. Abrimos CNPJ, micro-empresa – posteriormente criamos uma associação. Fizemos reportagens de “gaveta”, com abordagens mais atemporais, chamamos articulistas que eram nossos aliados. Naquele início contamos com apoio voluntário de uma rede de amigos. Nós éramos apenas jornalistas, vínhamos das redações. Não tínhamos experiência em empreendedorismo. Nunca tivemos pretensão de lucrar ou de ficar ricas. Isso não é possível no jornalismo que queríamos realizar. Mas sabíamos naquele momento que estávamos fazendo algo novo, pioneiro. Apenas não tínhamos muita ideia da dimensão desse algo novo. Naturalmente, pelos princípios jornalísticos que definimos já naquela época, não tínhamos recursos financeiros externos. Primeira decisão foi não receber dinheiro público. Tudo que fazíamos era com nossas finanças pessoais. Tentamos recurso de publicidade. Nunca conseguimos. Posteriormente, conseguimos financiamento de filantropia, que é a nossa principal fonte de sustentabilidade, mas é bom destacar que até nesse aspecto também somos criteriosas. Estou aqui resumindo esse período de pouco mais de uma década. Naquela fase bem inicial, em dezembro de 2013, a gente fez um trabalho muito marcante, eu e Kátia, que foi uma cobertura sobre o ataque de uma população inteira, praticamente, de uma cidade chamada Humaitá, no sul do Amazonas, aos indígenas Tenharim. A cobertura sobre esse caso era uma cobertura preconceituosa, que estigmatizava os indígenas. Envolvia uma suspeita de morte de três homens não indígenas. Mas ninguém ouvia os Tenharim. Então a gente ouviu, e isso foi um grande momento da nossa cobertura, que alcançou muita repercussão. Fazíamos entrevistas por telefone, ligávamos para o orelhão da aldeia. Kátia e eu passamos natal e o ano novo de 2013 trabalhando. Nos anos seguintes, fizemos coberturas gigantescas de vários assuntos. Desde o início, já fazíamos reportagens sobre o garimpo na Terra Indígena Yanomami. Esse nunca foi um assunto novo para nós. Reportagens sobre ameaças de morte a defensores de direitos humanos, sobre povos indígenas isolados, impactos da mineração e do agronegócio, desmatamento, queimadas, violência de gênero, etc. Veio a pandemia da Covid-19 e tivemos que fazer algumas mudanças em nosso planejamento, no nosso cronograma. Passamos a fazer matérias quase que diariamente. E, em um momento no qual grupos sociais como os indígenas e os quilombolas, estavam totalmente apagados na mídia. Foi uma cobertura intensa. Com a diferença é que não podíamos sair de casa, o acesso às comunidades estava fechado, e parte da nossa equipe tinha que se desdobrar nos cuidados, porque vivíamos em uma cidade que era um dos epicentros mundiais da pandemia, que era Manaus. Nesses anos todos, realizamos eventos, exposições, palestras, oficinas para comunicadores indígenas, incentivamos outros colegas a criarem iniciativas semelhantes. Tivemos muitos reconhecimentos, com premiações e homenagens. Eu, particularmente, fico mesmo feliz quando um indígena ou uma mulher ribeirinha vem a mim e diz: ‘aquela reportagem que você fez ajudou a mostrar a nossa luta’. A Amazônia Real completou 11 anos em outubro de 2024. São 11 anos mostrando que é possível ter um posicionamento em favor das populações amazônicas apagadas, estigmatizadas ou silenciadas, e isso também nos permitiu quebrar paradigmas do jornalismo colonial, que defende o distanciamento, a neutralidade. Uma longevidade imensa, que eu nem imaginava.